Ex-atriz da Globo fala sobre casamento aberto: ‘não é sobre transar mais’
Atriz Fernanda Nobre reflete sobre liberdade e defende novas formas de se relacionar fora do controle patriarcal
Atriz e pesquisadora, Fernanda Nobre usa sua trajetória pessoal e artística para questionar casamentos e outras estruturas sociais e afetivas que ainda aprisionam as mulheres. Aos 42 anos, com mais de três décadas de carreira, ela se dedica a refletir sobre liberdade, feminismo e o papel político dos relacionamentos, transformando experiências individuais em discussões coletivas sobre amor, corpo e autoestima.
Em bate-papo com ELA, Fernanda fala sobre como a arte e o pensamento crítico se tornaram aliados em sua transformação individual e coletiva. Confira a entrevista na íntegra abaixo:
Como a sua experiência pessoal com um casamento não monogâmico tem influenciado sua visão sobre relacionamentos e feminismo?
Quando a gente fala em não monogamia, quase sempre alguém pergunta: ‘Mas se é para viver aberto, não é mais fácil ficar solteiro?’. Não. Não é sobre ‘transar mais’. Não é sobre viver sem compromisso. Nos anos 1970, com a pílula anticoncepcional, a contracultura, o movimento hippie… houve uma explosão de liberdade sexual. O foco era o corpo: o direito de usá-lo sem culpa, de experimentá-lo. Hoje, a não monogamia vai além. Ela é um posicionamento político.
Não se trata apenas de experimentar novas práticas, mas de questionar as estruturas que moldaram o que chamamos de amor. Por que a monogamia foi criada? A monogamia nunca foi sobre amor; foi sobre herança, posse e controle. Foi uma estratégia histórica para domesticar o desejo feminino, garantir a linhagem masculina e tornar as mulheres previsíveis, controláveis e passivas.
A cada vez que tentamos romper com esse esquema, o sistema se reinventa. Primeiro, usou o discurso religioso; depois, vestiu o mesmo controle com a roupagem do amor romântico. E seguimos acreditando que não há outra forma de amar.
Minha escolha por uma relação fora dos moldes impostos é justamente um questionamento: por que seguimos chamando de natural o que foi construído para nos domesticar? E tudo bem escolher a monogamia, desde que seja uma escolha, e não uma imposição social disfarçada de destino afetivo.
Mas esse debate precisa sair do campo feminino. Os homens precisam participar dessa conversa. Eles precisam assumir que existe uma permissividade histórica que os autoriza a exercer uma monogamia hipócrita, onde podem trair, desejar e viver fora da relação sem que isso abale sua imagem social.
Enquanto isso, nós fomos doutrinadas a fingir que não sabemos disso. A sustentar o pacto do silêncio, a competir entre nós e a tentar controlar o que, por construção social, há séculos, foi feito para ser incontrolável. É essa lógica desigual que nos mantém inseguras, ansiosas e presas em relacionamentos tóxicos. E enquanto eles não se implicarem nessa discussão, seguiremos sendo as únicas a tentar consertar sozinhas um sistema que não fomos nós que criamos.
De que forma o Manifesto Feminino ajuda as mulheres a questionar e ressignificar padrões tradicionais de amor, casamento e sexualidade?
Criei o Manifesto Feminino a partir de uma inquietação muito pessoal: perceber o quanto nós, mulheres, crescemos acreditando que nossas escolhas eram livres, quando, na verdade, fomos treinadas para obedecer, para sermos aceitas e validadas pelo outro.
Fomos moldadas a amar de um jeito específico, a desejar de uma forma que agradasse, a sermos boas o suficiente para caber. Eu conduzo as mulheres a olharem para o amor, o casamento e a sexualidade não como experiências individuais, mas como construções culturais que moldaram nossas emoções e nossa autoestima.
A partir daí, começamos a reconhecer o quanto fomos ensinadas a amar como quem serve, como estamos exaustas de tentar sozinhas fazer com que nossos relacionamentos deem certo e como insistimos em relações que nos ferem ‘porque amamos demais’.
Sentimos culpa por colocar limites e, em pleno 2025, ainda aceitamos menos do que merecemos, porque precisamos ser par de alguém para sermos validadas na sociedade. Esses são os roteiros invisíveis que o Manifesto ajuda a desmontar.
No campo da sexualidade, aprendemos que o corpo feminino foi educado para agradar e não para sentir. Nós, mulheres, fomos treinadas a desejar o desejo do outro, a medir nosso próprio valor pela aprovação externa, a performar prazer para sermos aceitas.
O que busco com esse projeto é que as mulheres se sintam menos insuficientes, que entendam que o sentimento de ‘nunca ser o bastante’ é um projeto para nos manter distraídas, controláveis, manipuláveis.
Ao longo de quatro meses, cada mulher constrói ferramentas para sair de relações tóxicas e abusivas, se posicionar com firmeza em espaços onde ainda somos minoria e conquistar autonomia emocional e simbólica, se libertando da culpa que o patriarcado plantou em nós.
Como as mulheres podem se libertar da pressão social para encaixar seus relacionamentos em modelos pré-estabelecidos?
Fomos educadas para acreditar que um relacionamento ‘bem-sucedido’ precisa seguir um roteiro: ser exclusivo, durar para sempre, se tornar um casamento, gerar filhos. Mas esse modelo foi criado num contexto em que as mulheres não tinham autonomia econômica nem liberdade sexual. Ou seja, estar sozinha era sinônimo de fracasso, e o casamento, uma necessidade social. Hoje, a liberdade está em reconhecer que podemos reescrever esse roteiro.
Isso não significa rejeitar o amor, mas tirar dele a função de nos validar. Quando uma mulher entende que seu valor não está em ser escolhida, mas em se escolher, ela começa a se relacionar a partir da consciência, não da carência. Aí o relacionamento deixa de ser uma forma de sobrevivência e passa a ser uma escolha.
Beleza e autoestima são temas centrais em seu projeto. Como o feminismo pode transformar a relação das mulheres com o próprio corpo?
O feminismo constrói nossa autoestima porque combate o projeto de insuficiência direcionado a nós. A ‘beleza’, esse padrão inventado, é uma das mais sutis e poderosas ferramentas de controle sobre as mulheres, e talvez a mais fácil de reconhecer, porque todas nós, de uma forma ou de outra, já fomos atravessadas por ela.
Toda mulher já se olhou no espelho e se sentiu insuficiente. Esse sentimento é construído em nós. Foi estrategicamente criado e ensinado a ser sentido. Somos manipuladas pelo medo: medo de não sermos vistas, de não sermos escolhidas, de sermos esquecidas. O resultado é um sistema que não tem interesse em nos ver descansar.
Quais são os maiores desafios para as mulheres manterem o autocuidado e a autoestima em meio às pressões externas e internas?
Primeiro, o termo ‘autocuidado’ precisa ser olhado de forma crítica. O mercado estético percebeu gerações de mulheres cansadas de cuidar do outro e manipulou o discurso do autocuidado. Mulheres que precisam olhar para si mesmas foram conduzidas a acreditar que passar horas no banheiro hidratando o cabelo, esfoliando a pele, usando faixas de cetim ou seguindo passos de skincare é cuidado de si.
Mas etapas de skincare, hidratação, maquiagem… tudo isso é produto, marketing cooptando nosso tempo e dinheiro. E isso não tem a ver com classe social: todas somos impactadas pela ideia de que precisamos melhorar, consertar algo em nós. Vivemos numa corrida maluca, eterna e infinita.
Como o Manifesto Feminino estimula a construção coletiva de narrativas mais livres e potentes para as mulheres?
O Manifesto Feminino é uma comunidade criada para que mulheres compreendam e transformem juntas as narrativas que as moldaram. Ao entrar, têm acesso a 16 aulas gravadas de um curso online, em que explico, de forma acessível e profunda, conceitos do feminismo aplicados ao cotidiano: pressão estética, monogamia, ciúme, a maneira como fomos treinadas a expressar o amor, a sexualidade e as dinâmicas de relacionamentos tóxicos e abusivos.
Além disso, acontecem encontros quinzenais ao vivo, online, para aprofundar temas como maternidade, assédio e os diferentes papéis que fomos ensinadas a desempenhar. É um espaço de escuta, troca e reflexão.
O Manifesto não é apenas um curso: é um movimento de despertar coletivo, onde cada mulher pode se reconhecer, questionar os roteiros que a aprisionam e construir narrativas mais livres e potentes sobre quem é e quem deseja ser.
Como você equilibra a vida pública e as batalhas pessoais em um ambiente tão exposto?
Sou atriz desde que me entendo por gente. Comecei em uma novela aos 8 anos e nunca mais parei. Trabalho há 34 anos sem interrupção. Minha profissão determinou, desde muito cedo, quem eu era. Fui formada pelo meu trabalho: ele ditou minha rotina, meus desejos e minhas relações.
Por trabalhar em televisão, sempre vivi sob exposição. Minha existência, minha imagem e minha personalidade foram moldadas por isso. Essa consciência, de como eu estava sendo escrita por uma narrativa que não era minha, me levou à pesquisa, ao feminismo e à criação do Manifesto Feminino.
Hoje, meu equilíbrio está em transformar essa exposição em reflexão, usando o espaço público que conquistei para questionar o script que todas nós aprendemos a seguir.
Que papel o trabalho artístico e a pesquisa acadêmica têm na sua jornada de empoderamento e transformação?
Foi só quando mergulhei nos estudos feministas que compreendi que as mulheres são conduzidas, desde sempre, a corresponder às expectativas sociais para serem aceitas e sobreviverem dentro do patriarcado. Entender isso foi um ponto de virada.
O estudo teórico me deu linguagem para nomear sensações que eu já carregava no corpo: desconforto, culpa, desejo de agradar, necessidade de ser ‘a mulher certa’. Essa consciência mudou tudo: fortaleceu minha autoestima, minhas opiniões e, inevitavelmente, meu ofício.
Hoje, trabalho artístico e pesquisa caminham juntos. A arte me permite transformar em experiência sensível aquilo que a teoria revela como estrutura, e a teoria me dá lucidez para escolher o que quero dizer como artista, com quem quero estar e quais histórias quero contar. Tornei-me uma mulher mais consciente e uma atriz mais livre.
Quais conselhos você daria para mulheres que buscam ressignificar suas histórias e encontrar uma voz mais autêntica?
Estude a história das mulheres na humanidade. Quando você entende de onde vieram as regras que te ensinaram a seguir, percebe que seus desejos, medos e inseguranças não nasceram com você; foram construídos há séculos e continuam sendo reafirmados todos os dias.
As formas de reafirmação mudam, ganham novas linguagens justamente para que não percebamos que estamos sendo conduzidas. Por isso, desconfie do que disseram ser ‘natural’, ‘instintivo’ ou ‘feminino’. Nada é porque é. Tudo tem uma origem e uma razão.
Ressignificar a própria história começa com essa lucidez: entender que o que chamamos de escolha muitas vezes é obediência disfarçada. O passo seguinte é se juntar a outras mulheres.
O despertar individual é possível, mas o despertar coletivo se torna movimento. Quando uma mulher começa a enxergar, ela liberta não só a si mesma, mas todas as que vieram antes e as que virão depois.
Você se tornou uma inspiração para muitas mulheres. Como é essa conexão com suas fãs e qual papel acredita ter na transformação delas?
Quando uma mulher me diz que se reconheceu em algo que escrevi ou falei, sinto que a arte e a pesquisa cumpriram seu papel: provocar consciência. O que me move é isso: transformar incômodo em reflexão e reflexão em movimento.
Entendo que tenho um papel importante nesse coletivo, sim, mas não como alguém que conduz, e sim como alguém que acende luzes no caminho. Cada mulher que desperta a partir dessa troca também me transforma. É uma corrente de afeto e lucidez que nos fortalece mutuamente. Talvez seja esse o sentido mais bonito de tudo que construí até aqui.