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‘A monogamia está com os dias contados’, diz psicanalista

O amor romântico está saindo de cena. É o que afirma Regina Navarro Lins, psicanalista…

O amor romântico está saindo de cena. É o que afirma Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora com 46 anos de consultório e 13 livros publicados. Segundo ela, aquele amor idealizado, em que o casal se transforma em um, tem dado lugar à busca pela individualidade, o maior anseio das relações contemporâneas. Com ele, o velho modelo leva embora sua característica básica: a exigência da exclusividade. E abre caminho para novos tipos de relação — como o amor livre, o amor a três, o poliamor.

— A monogamia está com os dias contados — acredita Regina, que lança o livro “Amor na vitrine” (editora Best-Seller), nesta segunda (5).

A obra reúne questões ligadas a amor e sexo que a psicanalista ouviu ao longo de mais de quatro décadas de atendimento em terapia individual e de casal. Nesta conversa, ela, crítica ferrenha à moral e aos bons costumes, analisa porque, em pleno 2020, cenas como a de mulheres se beijando de biquíni no Leblon ou a frase de Angélica (“vibrador é vida”)ainda incomodam tanto.

Se o amor é uma construção social, como podemos nos livrar de moralismos e preconceitos que nos moldaram?

O amor romântico povoa as mentalidades do ocidente desde 1940, incentivado pelos filmes de Hollywood. É calcado na idealização do outro. Você atribui à pessoa características que ela não possuiu e inferniza sua vida para que se transforme no que você inventou. Prega que o casal se transforme em um, que quem ama terá  todas as suas necessidades atendidas pelo outro, que tudo só faz sentido ao lado do amado e a mentira horrorosa de que quem ama não tem desejo por mais ninguém.

Os anseios contemporâneos são em busca da individualidade. Portanto, o amor romântico começa a dar sinais de que está saindo de cena. Com ele, vai sua característica básica: a exigência da exclusividade. Por isso, vemos novas relações surgirem, como o amor livre, o amor a três, o poliamor. A mudança de mentalidade começou nos anos 1960, a partir da pílula anticoncepcional, que possibilitou os movimentos de contracultura: hippies, feministas e gays. Estamos no meio de um processo de profundas mudanças das mentalidade.

É o fim da monogamia?

Não tenho dúvida que a monogamia está com os dias contados. Acredito que daqui algumas décadas, menos pessoas vão se fechar numa relação a dois, mais gente desejará relações múltiplas. Há cinco anos, percebi no consultório um conflito de casais que nunca tinha visto: uma das partes propõe a abertura da relação, a outra, arranca os cabelos. Aí eles vêm para a terapia de casal. As relações mudam o tempo todo.

Quando vivemos uma transição, encontramos comportamentos díspares no meio social. Pessoas que já se libertaram, outros que ainda estão agarrados a padrões de comportamento. O novo assusta, o desconhecido gera insegurança. Estamos questionando como nunca o amor romântico e a monogamia. Precisamos discutir porque sabemos que pouca gente é monogâmica. Tudo é feito escondido. Na nossa cultura, a monogamia é um imperativo. Isso é um problema sério, porque as pessoas não são livres para escolher.

Como faz para não sofrer e nem fazer sofrer?

É tão difícil como era separar antigamente. Provavelmente, daqui a algumas décadas não haverá sofrimento na não monogamia. As pessoas sofrem muito porque acreditam que quem ama não sente desejo ou amor por mais ninguém. Mas é importante saber que não se pode aceitar abrir a relação pelo medo de perder o outro. Quando se abre mão de algo para agradar, o preço pode ser alto e inviabilizar a relação. Um se sentirá credor; o outro, eterno devedor.

O fato é que os modelos tradicionais de comportamento não dão mais conta da diversidade das relações.

Sempre tivemos que nos enquadrar em padrões para não sermos discriminados. Mas agora os modelos tradicionais não dão mais respostas satisfatórias e está se abrindo espaço para cada um escolher sua forma de viver. Não é substituir um modelo pelo outro. Se alguém quiser viver 50 anos com uma pessoa e só fazer sexo com ela, está tudo certo. Mas se quiser ter três parceiros, também está tudo certo.

Não amamos como nossos pais, e, provavelmente, nossos filhos não amarão como nós. Qual é a grande questão atual das relações contemporâneas?

Acredito que o grande dilema no amor se situa entre o desejo de simbiose, ficar fechado em uma relação, e o de liberdade. A busca pela individualidade é um anseio contemporâneo. No modelo tradicional de casamento, ninguém a respeita. Não há a menor cerimônia em se meter na vida do outro.

Esse modelo tem que ser questionado porque pessoas sofrem demais com com fantasias, desejos e medos. A minoria tem uma relação satisfatória. O sexo no casamento é o maior problema enfrentado pelos casais. Existem exceções, mas acredito que no casamento é onde menos se faz sexo, e as pessoas fingem não saber disso (risos).

A pandemia traz novos componentes?

As pessoas estão sufocadas com a convivência, percebendo características do outro que talvez não percebessem na vida toda. Novos acordos podem surgir. Espero que ela deixe um alerta para que não só respeitemos a individualidade do outro, como exijamos a nossa própria.

Durante a pandemia, a busca por aplicativos de relacionamento para casados aumentou bastante. O que significa?

Que todo mundo quer aconchego, estabilidade e segurança, mas também emoção, frio na barriga, coração disparado. E, no casamento, isso não acontece depois de um tempo. Não só pela convivência exagerada, mas porque as pessoas se controlam e há dependência emocional. Se meu parceiro depende de mim emocionalmente e não vai transar com outra pessoa porque tem medo que eu descubra, cadê a sedução, a conquista?

O mínimo de insegurança é necessário para haver tesão. Só acredito que um casamento é bom se houver respeito total ao jeito de ser, pensar e se comportar do outro, liberdade de ir a vir, e isso implica em ter amigos em separado, programas independentes e controle zero da vida do outro.

Olhando para as novas gerações, diria que casamento é coisa do passado?

Hoje, os grupos são fragmentados. Antigamente, havia predominância: todas as moças tinham que casar, separação era uma tragédia… Agora, há grupos livres, meninas transando com meninas, mulheres casadas que se separam e namoram outras mulheres e outros grupos em que ainda se espera o príncipe encantado.

Se pensarmos em histórias infantis, não há nada em Cinderela que incentive a menina a desenvolver seus talentos. Já Valente é maravilhosa, mostra essa mudança de pensamento. É uma mudança e tanto!

Você diz que, estimulados pelos movimentos sociais, estamos tentando desaprender e reaprender a amar. Dentro desse contexto, qual é o papel de cada um?

Estamos vendo o sistema patriarcal, que se instalou há cinco mil anos, perder suas bases. Ele dividiu a humanidade em duas partes, mulher e homem, determinou a mulher como inferior e criou ideal masculino de força coragem, sucesso, poder, ousadia, ter que ganhar dinheiro de nunca poder brochar. Os homens perseguem esse ideal e, por isso, dois terços das mulheres não têm orgasmo. Eles vão para o sexo com a preocupação em ter ereção e ejacular para corresponder ao ideal de nunca falhar.

A mulher foi criada acreditando que tem que corresponder às expectativas dos homens, “homem não gosta de mulher que fala alto, que se mostra”, essas bobagens. Hoje, muitos romperam ou estão rompendo com o mito da masculinidade. Os que romperam estão mais aptos a trocar no sexo e na vida afetiva com igualdade.

O machismo está perdendo prestígio. Muitas mulheres gostam de homens sensíveis que falam de suas emoções. Elas estão se libertando de comportamentos como “não tomar a iniciativa”, “não transar no primeiro encontro”, “ter um homem ao lado para ser valorizada”. A sociedade está preparada para as mudanças? Se nos anos 1950, dissessem que, no futuro, mulheres não precisariam casar virgem iam chamar de louco.

Há uma  parcela da sociedade que deseja segurar as rédeas do mundo apoiada na velha ideia de moral e bons costumes. Conseguirão?

A partir da pílula não tem volta. Porque as mulheres passaram a exigir o prazer e o casamento mostrou como trouxe sofrimento. Quando se tem um ministro da Educação que diz que gays vêm de  famílias desajustadas e uma ministra que afirma que mulher tem que obedecer o marido, é complicado. Mas, tirando os religiosos, não acho que esse retrocesso vai predominar.

Por que a relação de liberdade da mulher com seu corpo, como as que se beijaram de biquíni no Leblon, dias atrás, ainda incomoda em pleno 2020?

Incomoda os homens porque sempre as dominaram, se serviram delas para o próprio prazer e as veem saindo do modelo em que se sentem confortáveis. Incomoda mulheres por inveja da liberdade da outra, por não conseguirem também se libertar. Mulheres foram oprimidas, violentadas, humilhadas nesses cinco mil anos. No final da Idade Média, era comum jovens saírem em bando estuprando mulheres. Por muito tempo, maridos podiam espancar as esposas desde que não quebrassem nenhum osso.

Recentemente, a apresentadora Angélica e a atriz Fernanda Paes Leme defenderam que “vibrador é vida” e viraram alvo de conservadores. No que isso atrasa o debate sobre algo que já é um tabu, a masturbação feminina?

No século XIX, a marca da feminilidade era a mulher não gostar de sexo. Há uma frase de um médico chamado Lord Acton, que representa o pensamento da época: “Felizmente,  sabemos que essa história de que a mulher tem prazer no sexo não passa de uma calúnia vil”. É toda uma construção em cima disso.

Cesar Maia baixou uma lei em que escolas tinham que ficar a metros de sex shops. Tudo ligado a sexo é visto como sujo e perigoso. Sempre que se quer ofender uma pessoa, usa-se um xingamento sexual. Criança cresce achando sexo sujo, feio e perigoso. Essas coisas são passadas, inconscientemente, de geração para geração.

Quando uma mulher diz que o vibrador é uma maravilha, está dizendo: “eu tenho prazer no sexo e busco intensificá-lo”. Isso é visto como uma aberração. Antigamente, transava-se no escuro, a mulher usava uma camisola com um buraco e os homens iam para bordeis.

O consumo de produtos eróticos, especialmente vibradores, disparou na pandemia. O que isso diz sobre a gente?

A mulher tem mais dificuldade em ter orgasmo. Muitas não têm e estão começando a entender que podem ter. Inclusive, sexólogos que trabalham com essa questão, dizem que moças que se masturbaram na adolescência têm mais facilidade de ter orgasmo na vida adulta. Indicam como tratamento para a disfunção sexual, muitas vezes causada pela repressão sexual, que conheçam seu corpo, se toquem e se masturbem. Mulheres hoje usam vibradores com seus parceiros. As pessoas vão viver muito melhor quando sexo for percebido como algo bom e desejável.

Que conquistas a quarta onda feminista está trazendo para as relações?

O movimento feminista é fundamental. Importante que reconheça a importância de homens e mulheres se aliarem contra a mentalidade patriarcal para criar uma sociedade de parceria e igualdade de direitos. Não entendo alguém não ser feminista, só diante de duas possibilidades: desconhece totalmente a história ou não está nem aí para a mulher continuar sofrendo como sempre.

O machismo prejudica os homens. Corresponder ao ideal masculino, ninguém aguenta. A mentalidade patriarcal associou a masculinidade à heterossexualidade, o que contribui com preconceito. Então, gay não é homem?

Caminhamos para o fim do gênero. Se você perguntar a esses ministros o que é ideologia de gênero, vão responder que é transformar menino em menina. Mas ideologia de gênero é exatamente o que o sistema patriarcal fez: separou ou homem e mulher, dividiu a humanidade em duas partes, azul e rosa, homem não chora… Essa ideia mutila muita gente.

A questão é que todos somos fortes e fracos, ativos e passivos, corajosos e medrosos. Já existem escolas na Suécia e na Austrália que fazem questão de não trabalhar gênero. No baú dos brinquedos, é bola, carrinho, boneca, mamadeira e as crianças são livres para brincar com o que quiserem. Sexo é biológico, mas gênero é construção social.

É possível ser feliz?

Podemos tentar viver com mais satisfação nos relacionamentos amorosos. Temos que nos livrar das amarras, do moralismo e dos preconceitos. Procurar ter sintonia com nossos desejos. Para isso, é preciso ter coragem.5