COMUNIDADES TERAPÊUTICAS

Investimento federal no tratamento de dependentes químicos sobe 95%

O repasse de verbas a empresas privadas que realizam tratamento com internação de dependentes químicos…

Servidores de presídio barram drogas escondidas em medicamentos
Investimento do governo federal para tratamento de usuários de droga aumentou no Brasil (Foto: DGAP-Goiás)

O repasse de verbas a empresas privadas que realizam tratamento com internação de dependentes químicos passou de R$ 153,7 milhões em 2019 para R$ 300 milhões neste ano, segundo o Ministério da Cidadania.

Levantamento feito pela Folha de S.Paulo mostra que 74% das comunidades terapêuticas que recebem financiamento federal são de matriz religiosa.

A rede privada de tratamento para o vício em álcool e drogas foi expandida no governo de Jair Bolsonaro. Em 2018, havia 2.900 leitos patrocinados com dinheiro público no Brasil. Esse número subiu para 11 mil em 2019, e miram-se 20 mil vagas até o final de 2020.

Consultado pela reportagem sobre a ampliação da rede e sobre os motivos técnicos para o aumento de 95% do investimento, o Ministério da Cidadania não se pronunciou até a conclusão desta reportagem.

O levantamento da Folha cruzou informações do mapa das comunidades terapêuticas com as informações em canais oficiais acerca das 487 entidades que recebem os repasses: 37% são católicas, 29% são evangélicas e 8% se dizem apenas cristãs.

A expansão foi interrompida brevemente pela pandemia de Covid-19, mas logo foi retomada com a reabertura de um edital em junho de 2020.

Além disso, em outubro, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, anunciou um projeto para internar dependentes químicos em situação de rua, em parceria com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O investimento extra de R$ 10,2 milhões será destinado à abertura de mais 1.400 leitos nas organizações já credenciadas.

Em julho deste ano, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) divulgou uma resolução que regulamentou como política pública a internação de crianças e adolescentes. Ela deve entrar em vigor no prazo de um ano.

O Ministério Público Federal (MPF) e o Conselho Nacional de Saúde foram contra a medida, por considerarem a internação ilegal pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

O Conad foi um dos órgãos públicos que perderam participação popular em 2019.

As decisões agora são tomadas exclusivamente por representantes governamentais. Entidades com conhecimento técnico sobre o tema, como o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente não foram consultadas sobre a medida, que afeta jovens de 12 a 18 anos.

Para especialistas em saúde mental, a expansão não atende a critérios técnicos ou médicos. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Leonardo Pinho, o investimento está onde menos se veem resultados.

“A internação não é o mais importante e não é recomendada como tratamento. É para isso que existem os Caps.” O orçamento dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) previsto é de R$ 158 milhões, pouco mais de 50% do destinado a comunidades terapêuticas.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do MPF vê no movimento do governo federal uma escolha política.

A procuradora Lisiane Braecher, coordenadora do grupo de trabalho da PFDC sobre o tema, enfatiza que “o vício em álcool e drogas é questão de saúde mental, por lei”. E, diz, “a Política Nacional de Saúde Mental garante o direito ao tratamento no próprio território do dependente, com sua família e comunidade”.

Mas a característica legal mais complexa quanto às comunidades terapêuticas é que, embora elas se insiram no contexto de um problema de saúde pública e sejam regulamentadas no Ministério da Saúde desde 2012, são credenciadas e financiadas pela pasta de Lorenzoni.

Para Braecher isso burla normas do Sistema Único de Saúde, como a Política de Saúde Mental, que estipula que a internação precisa ser indicada pelo Caps e que o residente deve participar das decisões.

Organizações civis e órgãos de controle público também criticam o fato de que, apesar do aumento de dinheiro público investido, não haja fiscalização nem diretrizes de práticas médicas desses locais. A única inspeção regular nas comunidades é a sanitária, pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O MPF diz pedir constantemente atualizações sobre as condições básicas de saúde e o cumprimento de direitos básicos dos pacientes, mas afirma não receber informações. “Não tenho conhecimento de o Ministério da Cidadania ter feito uma única inspeção nesses locais”, afirma Braecher.

Dessa forma, não há controle nem padronização dos tratamentos oferecidos, o que abre espaço para modelos que não seguem as melhores práticas validadas pela ciência.

Entidades ligadas a igrejas apresentam como metodologia a espiritualidade e a laborterapia (trabalho como terapia). “A lógica religiosa muitas vezes vê [o vício] não como um problema de saúde, mas de caráter. E isso vai contra todo conhecimento e procedimentos consolidados”, avalia o presidente da Abrasme.

O último relatório de inspeção das comunidades terapêuticas foi divulgado em 2018. Na ocasião, o MPF e outros órgãos civis descreveram violações de direitos humanos, como privação de liberdade, violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual. Também foram encontrados indícios de uso de castigos que poderiam ser enquadrados como tortura e a prática de trabalhos forçados sem remuneração.