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CACs driblam fiscalização e montam fábricas clandestinas de munição

Na manhã de 15 de outubro de 2020, PMs do 4º Batalhão de Ações Especiais…

CACs driblam fiscalização e montam fábricas clandestinas de munição (Foto: Agência Brasil)
CACs driblam fiscalização e montam fábricas clandestinas de munição (Foto: Agência Brasil)

Na manhã de 15 de outubro de 2020, PMs do 4º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep) foram checar uma denúncia sobre produção ilegal de munição em Lajeado, Zona Leste de São Paulo. No endereço, eles se depararam com uma casa de três andares habitada por um casal de idosos e sua família. As câmeras de vigilância do lado de fora chamaram atenção, mas os agentes tiveram certeza de que o relato do denunciante era certeiro quando um homem com a roupa suja de chumbo, usado na montagem de projéteis, atendeu à porta. No imóvel, havia uma fábrica clandestina de munição: foram apreendidos 28.729 cartuchos, 21 quilos de pólvora, 600 quilos de chumbo e instrumentos para a produção de cartuchos, como moldes, máquinas de recarga e balança de precisão.

O homem que recebeu os PMs foi o filho dos donos da casa, Enderson Hideki Kinjo, registrado no Exército como atirador desportivo. Na ocasião, ele foi preso em flagrante e, em agosto passado, condenado a dez anos por comércio ilegal de munição.

No Brasil, a venda de munição por colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) é proibida. No entanto, da mesma forma que Kinjo, outros integrantes da categoria conseguem driblar a fiscalização do Exército, órgão responsável pelo controle dos CACs, e montam verdadeiras fábricas clandestinas de munição em suas casas. O GLOBO teve acesso a inquéritos policiais que descobriram a produção ilegal de cartuchos para venda por seis CACs em quatro estados diferentes desde 2016.

Nesses locais, colecionadores e atiradores usam máquinas e prensas para preencher estojos de cartuchos já usados com pólvora e produzir, em larga escala, munição nova, recarregada e apta para uso. CACs são autorizados a comprar pólvora e recarregar projéteis, mas somente em pequenas quantidades, para uso próprio. A proibição da recarga em escala e da venda tem como objetivo evitar que esse tipo de projétil — muito difícil de ser rastreado — caia nas mãos de criminosos.

No caso de Lajeado, a polícia não conseguiu identificar para quem Kinjo vendia os cartuchos. Aos PMs que o prenderam, o atirador afirmou que “inicialmente, vendia as munições para atiradores, mas depois as vendia para quem quisesse comprar”. Depois que foi preso, ele teve o certificado de registro cancelado por “perda de idoneidade”. Em outros quatro casos levantados pelo Globo, contudo, as investigações comprovaram que os cartuchos produzidos eram vendidos para o crime organizado.

Um desses inquéritos culminou, em abril de 2018, na prisão do CAC e policial militar aposentado Décio Antônio Gonçalves, no Distrito Federal. O colecionador fornecia cartuchos recarregados em sua casa para uma quadrilha especializada em roubos de celular nas cidades-satélite de Brasília. A participação de Gonçalves no esquema foi descoberta em mensagens extraídas do celular de um dos criminosos. Numa delas, o CAC ofereceu uma caixa de munição de calibre 9mm recarregada, após seu interlocutor dizer que o preço da original estava “salgado”. A conversa terminou com a venda de duas caixas de cartuchos por R$ 300 cada. O colecionador ainda pediu que o interlocutor fosse pegar os projéteis em sua casa — onde mantinha a oficina clandestina. No dia da prisão do CAC, a polícia foi ao imóvel e apreendeu mais de dez mil cartuchos, prensas de recarga e máquinas para montagem dos projéteis. Em 2019, Gonçalves foi condenado a sete anos e seis meses de prisão em segunda instância.

Mercado facilitado

Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas, a política armamentista do governo de Jair Bolsonaro facilitou a montagem de fábricas clandestinas. Por decreto, o presidente aumentou o limite de cartuchos que os integrantes da categoria podem comprar anualmente. Antes, o limite máximo, para atiradores com muita experiência em competições, era de 40 mil projéteis e quatro quilos de pólvora para recarga de munição. Hoje, até atiradores inexperientes podem adquirir 180 mil cartuchos e 20 quilos de pólvora — com essa quantidade de insumo, é possível recarregar 40 mil projéteis de pistolas, quantidade maior do que as polícias do Rio apreenderam com criminosos de janeiro a abril deste ano. Com as mudanças nas regras, o número de CACs no Brasil cresceu de 117 mil em 2018 para mais de 673 mil até junho de 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

— A recarga de munição é uma atividade muito restrita na maioria dos países do mundo, porque esses cartuchos são quase impossíveis de rastrear: não é possível saber de onde saíram, quando foram produzidos e para onde foram. Outro fator que beneficia o crime organizado é o custo. Se antes criminosos tinham que pagar altos valores em dólar para trazer munição de fuzil traficada pelas fronteiras, agora têm outro canal que produz cartuchos mais baratos e é mais próximo ao local do uso, o que dificulta a interceptação da polícia e mantém as quadrilhas abastecidas — diz Langeani.

Munições recarregadas são frequentemente apreendidas com criminosos: em maio de 2021, por exemplo, a Polícia Civil do Rio apreendeu projéteis do tipo com traficantes na operação que terminou com 28 mortes na favela do Jacarezinho. Apesar de o Exército ser responsável por fiscalizar CACs, nenhum dos casos levantados pelo Globo veio à tona com a ação de militares, mas sim a partir da checagem de denúncias pela PM ou em investigações das polícias Civil e Federal sobre organizações criminosas. Indagado sobre os casos, o Exército respondeu que os nomes citados na reportagem “não possuem certificado de registro (CR) ativo” , ou seja, teriam perdido ou não renovado seus registros de CAC.

Uma delas culminou na descoberta de outra fábrica clandestina de munição, em dezembro de 2016, nos fundos da casa do atirador e colecionador Arnaldo Miranda dos Santos, na Zona Leste da capital paulista. No imóvel, policiais civis apreenderam cerca de 10 mil projéteis, pólvora e maquinário para a recarga e fabricação de cartuchos. Meses antes, ele havia sido flagrado, em escutas autorizadas pela Justiça, vendendo para vários compradores as munições que recarregava em casa. Pela investigação, Santos negociou inclusive cartuchos “de ponta verde”, capazes de perfurar blindados, para ataques a carros-fortes. Em 2020, o CAC foi condenado a nove anos de prisão.

Nove meses antes, a PM do Paraná encontrou uma oficina de recarga de munição dentro da distribuidora de gás do colecionador de armas Claudio Roberto Andreassa. O nome do CAC havia sido citado por traficantes em ligações monitoradas pela polícia como fornecedor de projéteis do grupo criminoso. Os policiais apreenderam pólvora, chumbo, componentes de cartuchos, um molde de madeira para recarga e quase 500 projéteis no estabelecimento, na cidade de Campo Largo. Andreassa foi condenado a quatro anos de prisão.

No último dia 13, a Polícia Civil da Paraíba encontrou mais de mil cartuchos e duas máquinas de recarga de munição na casa de um CAC investigado por fornecer munição e alugar armas para quadrilhas de assaltantes de bancos. O homem, morador de São Bento, foi preso em flagrante.

Por Bolsonaro, a compra de máquinas de recarga de munição não precisaria sequer passar pelo crivo do Exército. Em decreto de 2021, ele tirou o equipamento da lista de Produtos Controlados pelo Exército (PCE), não sendo mais necessária autorização militar para sua aquisição e uso. A mudança foi barrada pelo STF.